Por que africanos escravizaram africanos no tráfico transatlântico?

"O surgimento do trato oceânico intensifica a acumulação de bens e a troca de mercadorias nas sociedades negras. Na África quinhentista o fator que, em última instância, favorece o tráfico negreiro é o comércio continental de longo curso, difundido nas regiões subsaarianas pelo avanço do islã e os intercâmbios com o Magrebe. Embora com menor intensidade que no Oeste e no Norte do continente, esse modo de permuta também rolava na África Central ocidental antes dos descobrimentos." (L. F. de Alencastro)

Comércio Atlântico



Na minha época de escola aprendi que a escravidão era algo repulsivo, criado pelo homem branco e no final das contas, alguns homens brancos "bonzinhos" se empenharam pela abolição da escravidão. Sempre o ator principal é o dito "homem branco". Hoje, em sala de aula a perspectiva histórica sobre a escravidão, o tráfico transatlântico, a abolição da escravidão, etc.., são vistos sob olhares e ângulos diferentes. A partir da lógica africana percebemos um pouco do que significou o tráfico transatlântico para esses povos.

Conforme Alencastro, os africanos já possuíam uma lógica comercial antes da chegada dos europeus no litoral africano. O trato oceânico maximizaria a acumulação de bens entre os Estados africanos. Vamos ver o caso dos portugueses.

Segundo Barroso, dentro da África existia pelo menos dois tipos de sociedades vigentes (grosso modo): I - cujo os sistemas políticos se caracterizam por "régulos centralizadores com um intenso aparato administrativo". II - "Falta de autoridades centrais com pequenos núcleos comunitários descentralizados de liderança".

A partir dessa lógica, Estados africanos comercializavam entre si diversos produtos, incluindo escravos. Existiam verdadeiras redes de trocas e rotas fluviais para isso. Como exemplo, o comércio no Saara onde funcionava o tráfico transaariano.

Esquema do voluptuoso comércio entre estados africanos.
Ao norte da África no deserto do Saara existiam rotas onde caravanas de dromedários comercializavam seus produtos. "As rotas existiam muito antes da chegada dos portugueses ao litoral da conhecida Guiné desde a Idade Média e no século XVI este tráfico [transaariano] estava no auge na exportação de mão-de-obra escrava enquanto o tráfico transatlântico ainda prenunciava a exportação de cativos." (BARROSO). Desse modo, dentro da África o comércio  de escravos era uma prática comum, legalizada, e gerava muitos lucros para seus estados.

"O comércio se fazia por trocas e mais frequentemente por intermédio de moeda de transferência: cauris* para os pequenos negócios, ouro, sal ou cobre, conforme o mercado" (CISSOKO).

Agora, por que africanos escravizaram africanos? No passado, na região conhecida como África, esse todo, não era vista pelos seus habitantes como uma sociedade com laços de irmandade. Não era como a Europa e seus Estados Nacionais, na verdade, "numa única região encontramos sistemas políticos e culturais amplamente diferentes" (BARROSO). No século XV quando os portugueses chegaram na região, os africanos não se viam enquanto um continente. Você nunca iria ouvir de um nativo: "Ah! Nós pertencemos ao continente africano somos a nação negra!"

Conforme Costa e Silva "os africanos não escravizavam africanos, nem se reconheciam então como africanos. Eles se viam como membros de uma aldeia, de um conjunto de aldeias, de um reino e de um grupo que falava a mesma língua, tinha os mesmos costumes e adorava os mesmos deuses. Eram, ainda que pudessem ignorar estes nomes - que muitas vezes lhes eram dados por vizinhos ou adversários -, mandingas, fulas, bijagós, axantes, daomeanos, vilis, iacas, caçanjes, lundas, niamuézis, macuas, xonas - e escravizavam os inimigos e os estranhos".

Na África existiam sistemas políticos diferentes, estados, sociedades que tinham seus interesses particulares (interesses econômico, religioso, cultural e social). Os portugueses quando chegaram na África no século XV, aproveitaram a estrutura já existente de comércio interno e ampliaram para o Atlântico. "A partir do século XV, com a colaboração e/ou permissão dos africanos, os portugueses estabeleceram feitorias para a comercialização e a troca com os comerciantes locais tendo o objetivo maior de obter escravos na costa." (BARROSO) Na verdade, o tráfico transatlântico começou como um canal do tráfico interno transaariano.

Elo entre o comércio interno africano e o surgimento do trato oceânico.



A Escravidão teve seus significados para os próprios africanos, e para os europeus. Para os africanos era um comércio legal que movimentava a economia da sociedade. Para outros era o consequência das guerras, punição judicial, guerras santas, razias (do árabe غزو, ghazw ou ghazah, "batalha").

Para alguns religiosos europeus o que significou a escravidão? Alencastro registra em seu livro que "o padre Antonio Vieira interpreta o fenômeno como um presságio divino no seu "sermão XXVII": a "transmigração", o transporte contínuo de angolanos nos mares do Atlântico Sul, permitia, por especial misericórdia de Nossa Senhora do Rosário, que eles fossem levados à América portuguesa para se salvarem do paganismo africano", ou seja, assim como os europeus, permeados de uma simbologia européia medieval, imbuídos do senso de civilidade e eurocentrismo eles achavam que era seu dever salvar as almas desses pobres pagãos.

Assim, a participação ativa de comerciantes africanos foi fundamental para o comércio de escravos no atlântico. Sem o aparato administrativo, rotas de comércio, estados africanos sólidos, a escravidão de milhões de pessoas não teria sido possível. 

Rotas e relações comerciais na África do século XVI
* Os cauris (conchas resistentes do oceano Índico fáceis de identificar e impossíveis de falsificar): não era algo primitivo, elas "já tinham uma longa história de utilização como moeda na Ásia, muito antes de sua implantação na África. Foram usadas na China até o século XIII e foram moedas corrente em Bengala e outras partes da Índia até o século XIX. ...eram utilizados nas ilhas do Pacífico e chegaram mesmo a aparecer na Baía do Hudson entre os Índios da América do Norte." (Hebert S. Klein)

Fontes: 

ALENCASTRO, Luiz Filipe de,. O Aprendizado da colonização. IN:_________. O trato dos viventes. Formação do Brasil Atlântico Sul. Séculos XVI e XVII, SP, Companhia das Letras, 2000.

BARROSO, Reinaldo dos Santos. Economia e Política administrativa do Império Português Setecentista: Portugal, Alta-Guiné e Maranhão sob o signo do Atlântico. IN: __________. Nas rotas do Atlântico equatorial: tráfico de escravos africanos da Alta-Guiné para o Maranhão. (1770-1800), 2009, Salvador, UFBA.

CISSOKO, Sékéné Mody. Os Songhai do século XII ao XVI, capítulo oito. In: História Geral da África, IV, África do século XII ao XVI. Brasília: UNESCO, 2010.

COSTA E SILVA, Alberto da. Sexta conversa. In: ________. A África explicada aos meus filhos. RJ, Agir, 2008.

[fotos]
História / vários autores. – Curitiba: SEED-PR, 2006 

Rotas e relações comerciais na África do século XVI: p. 40 História Geral da África, V, África do século XVI ao XVIII. Brasília: UNESCO, 2010.




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